por Luiz Rami­ro (02/01/2020) em revistaamalgama.com.br

Quan­do tudo pare­ce se des­fa­zer é que nos damos con­ta do per­ma­nen­te. Tra­tar de uma obra que tem como títu­lo Cons­ti­tui­ção Cris­tã dos Esta­dos pode­ria ser algo anti­qua­do, enfa­do­nho, atra­sa­do ou fora de lugar. Mas não, é clás­si­co, é reno­va­dor. A ques­tão ganha um fres­cor espe­ci­al, inclu­si­ve pela for­ma agra­dá­vel e cla­ra, na pena do juris­ta espa­nhol Miguel Ayu­so Tor­res. Lan­ça­do no Bra­sil em 2019 pela edi­to­ra Resis­tên­cia Cul­tu­ral, e acom­pa­nha­do de ensai­os de Ricar­do Dip, Car­los Nou­gué e Juan Fer­nan­do Sego­via, o tex­to prin­ci­pal lan­ça cen­te­lha sobre uma nova estra­té­gia à polí­ti­ca católica.

Déca­da após déca­da a lite­ra­tu­ra, a arqui­te­tu­ra, a músi­ca e as artes em geral repre­sen­ta­ram o sécu­lo XX como o ápi­ce do mun­do veloz e can­sa­do. Esse para­do­xo foi com­pre­en­di­do pela soci­o­lo­gia como a pró­pria carac­te­rís­ti­ca e mar­ca de deca­dên­cia da moder­ni­da­de, seja pelo colap­so da soci­e­da­de indus­tri­al[1], a iden­ti­fi­ca­ção de uma soci­e­da­de de ris­co[2], a flui­dez e incon­sis­tên­cia de uma moder­ni­da­de líqui­da[3], a noção de uma soci­e­da­de em rede[4], a era da impre­vi­si­bi­li­da­de[5]. São esses os des­po­jos per­ce­bi­dos das linhas que mar­ca­ram o novo regi­me: a iden­ti­fi­ca­ção do tem­po com o futu­ro, qua­se indi­fe­ren­te ao pas­sa­do; a ide­o­lo­gi­za­ção da vida, para além da pró­pria polí­ti­ca; a hiper­tro­fia da poli­ti­za­ção do coti­di­a­no; bem como o insis­ten­te ape­lo demo­cra­ti­zan­te[6].

Por mais que essa rota jamais pro­pu­ses­se algu­ma esta­bi­li­za­ção, é bem ver­da­de que sem­pre teve como prin­ci­pal empe­ci­lho a reli­gião, pre­ci­sa­men­te a Igre­ja cató­li­ca. A secu­la­ri­za­ção é o eixo cor­tan­te que assi­na­la a his­tó­ria mun­di­al dos últi­mos sécu­los. Tra­ta-se da saí­da da reli­gião, da reti­ra­da da cruz do cen­tro da vida. O pro­pó­si­to foi o de sus­pen­der o sacri­fí­cio, a vida do espí­ri­to, a dimen­são do sobre­na­tu­ral. Capí­tu­lo sig­ni­fi­ca­ti­vo e recen­te des­se pro­ces­so refe­re-se ao des­tro­na­men­to de Cris­to pela pró­pria Igre­ja, a par­tir do Con­cí­lio Vati­ca­no II. De fato tudo isso acon­te­ceu. Mas não é o fim, nem tudo foi arra­sa­do. A Igre­ja per­ma­ne­ce, ain­da que con­tra a revoada.

A soci­e­da­de moder­na, secu­la­ri­za­da, libe­ral, auto-cen­tra­da, traz em suas cer­te­zas algo de débil e pere­cí­vel. Outro­ra novo, o lai­cis­mo se tor­nou velho. A insus­ten­ta­bi­li­da­de da auto­no­mia huma­na é tama­nha que todos estão sozi­nhos na mul­ti­dão. Impe­ra a inse­gu­ran­ça, por­que pai­ra a des­con­fi­an­ça. Dian­te dis­so, e sem timi­dez, sem aca­nha­men­to, sem cons­tran­gi­men­to, tra­zer à tona a ques­tão de uma dou­tri­na polí­ti­ca cató­li­ca é no míni­mo um alen­to, um sus­pi­ro, uma mar­ca da Boa Nova.

Quan­do esta­va me con­ver­ten­do, uma pes­soa ten­ta­va me dis­su­a­dir do cami­nho dizen­do: “vais te tor­nar cató­li­co, logo ago­ra que a Igre­ja aca­bou?” A pro­vo­ca­ção era conhe­ci­da, remon­ta­va a Vol­tai­re. Man­tra ven­ci­do, mas mes­mo que inco­mo­das­se, o fato é que hoje, depois de mui­ta insis­tên­cia con­tra todas fra­que­zas, e mini­ma­men­te per­ce­ben­do a imen­si­dão do edi­fí­cio reli­gi­o­so, pos­so repro­du­zir em res­pos­ta algo que um outro ami­go me falou: “tal­vez o cato­li­cis­mo ain­da nem come­çou[7]. Há um quê des­se espí­ri­to no livro de Ayu­so, pois em pou­cas pági­nas demons­tra como já temos todo um monu­men­to pron­to para des­fru­tar, abra­çar, apren­der e apli­car a res­pei­to da neces­sá­ria vida cris­tã dos estados.

Quan­do já se viu o infer­no, a insis­tên­cia no erro é lou­cu­ra. Um dos resu­mos para o aci­den­te nucle­ar de Cher­nobyl, em 1986 na cida­de de Pripyat (Ucrâ­nia), é que ali foi  como se Deus tives­se aber­to um peda­ço do mun­do para que os homens pudes­sem enca­rar o que era o infer­no. Já sabe­mos de tudo isso, e por isso tal­vez nun­ca esti­ve­mos tão pron­tos, tran­qui­los, sere­nos, e dis­pos­tos a enfren­tar aqui­lo que mui­tos asse­gu­ra­vam como desa­pa­re­ci­do. Ao con­trá­rio, não há nada mais novo do que falar sobre o Esta­do con­fes­si­o­nal, o erro da sepa­ra­ção Igre­ja-Esta­do, o beco sem saí­da da liber­da­de reli­gi­o­sa e de como é pre­ci­so res­ti­tuir uma dou­tri­na polí­ti­ca da Igre­ja (que ela pró­pria se desvirtuou).

Como fazer isso quan­do o balan­ço é de uma soci­e­da­de radi­cal­men­te secu­la­ri­za­da, até mes­mo anti­cris­tã? Ayu­so acom­pa­nha as per­cep­ções soci­o­ló­gi­cas da cri­se, demons­tran­do, a par­tir de um caro con­cei­to de Mar­cel de Cor­te – a “dis­so­ci­e­da­de” – como se deu o fra­cas­so da vida comu­ni­tá­ria no mun­do atu­al. A cri­se civi­li­za­ci­o­nal é de reco­nhe­ci­men­to, na medi­da em que não nos reco­nhe­ce­mos nas cate­drais. O incên­dio na Igre­ja Notre-Dame de Paris não foi mais que um sím­bo­lo máxi­mo des­se descaminho.

Fren­te a isso o empe­nho é pela ree­di­fi­ca­ção. Miguel Ayu­so expõe como o mate­ri­al para uma Dou­tri­na Polí­ti­ca da Igre­ja já está pron­to, do que foi dei­xa­do pelos docu­men­tos da Igre­ja ao lon­go dos sécu­los. A estra­té­gia ape­nas pre­ci­sa ser refei­ta e rein­tro­du­zi­da na pró­pria ins­ti­tui­ção de São Pedro. O pri­mei­ro pas­so é ter Cris­to como “Cris­to-Rei”, o que cor­res­pon­de a enca­rar o erro, o mal­fa­da­do con­sór­cio com a moder­ni­da­de que enca­mi­nhou a Igre­ja para a sua cri­se, levando‑a ao des­cum­pri­men­to com o man­da­men­to de São Pau­lo, quan­do dizia: “Não vos con­for­meis com este sécu­lo, mas trans­for­mai-vos pela reno­va­ção do vos­so espí­ri­to, para que pos­sais dis­cer­nir qual é a von­ta­de de Deus, o que é bom, o que lhe agra­da e o que é per­fei­to” (Car­ta aos Roma­nos, 12,2).

Defi­ni­ti­va­men­te, sem repa­rar o erro da men­sa­gem con­ci­li­ar (do Con­cí­lio Vati­ca­no II) não se pode aco­lher o que os papas sub­se­quen­tes ensi­na­ram. Há oca­siões em que Miguel Ayu­so é mui­to cla­ro a esse res­pei­to, como ao demons­trar que João Pau­lo II foi dia­me­tral­men­te con­tra São Pio X, ao defen­der a sepa­ra­ção Igre­ja Esta­do, enquan­to a tra­di­ção dou­tri­ná­ria reve­la somen­te a neces­sá­ria distinção.

É curi­o­so pen­sar a cato­li­ci­da­de sem o nor­te­a­men­to da Igre­ja roma­na. Mas esse é um con­vi­te que Ayu­so dei­xa, em nome da pró­pria rein­te­gra­ção da auto­ri­da­de des­sa mes­ma Igre­ja. Nos­so autor está bem acom­pa­nha­do nes­te bom com­ba­te, com um dos íco­nes do lai­ca­to fran­cês da segun­da meta­de do sécu­lo XX:

E o tex­to de Jean Madi­ran abre cami­nhos, e con­vi­da a viver toda a vida cris­tã, a dar um juí­zo cris­tão sobre cada ideia, sobre cada ato, sobre cada acon­te­ci­men­to, o que, ain­da que a Igre­ja hie­rár­qui­ca mani­fes­ta­men­te não faça – por­que não pode fazê-lo -, nos con­vi­da a fazê-lo cons­tan­te­men­te, mas, isso sim, a nos­so ris­co e aven­tu­ra, enquan­to mui­tos sis­te­mas ide­o­ló­gi­cos que nos ron­dam que­rem per­su­a­dir-nos, pelo con­trá­rio, de que não o faça­mos, de que renun­ci­e­mos a fazê-lo catolicamente.

É um ape­lo à cora­gem, ao enfren­ta­men­to, sem ide­o­lo­gis­mo e sem bra­dos revo­lu­ci­o­ná­ri­os. Afi­nal, a visão cató­li­ca das coi­sas come­ça pela cla­ra per­cep­ção da rea­li­da­de. A des­cri­ção mais crua da polí­ti­ca, como fenô­me­no de emba­te entre ami­go e ini­mi­go, veio de um cató­li­co, do ale­mão Carl Sch­mitt. Quer dizer, não há temor cató­li­co de se enfren­tar a polí­ti­ca, ela de fato é o rei­no de César, mas sem enfren­tá-la com as vir­tu­des car­de­ais não logra­mos cum­prir os desíg­ni­os míni­mos na ter­ra. Tan­to que Ayu­so enca­ra que o pro­ble­ma do Esta­do cató­li­co sur­ge jus­ta­men­te por estar ali­ja­do do con­fes­si­o­na­lis­mo. Uma polí­ti­ca cató­li­ca se per­deu, pon­do em ris­co a pró­pria cato­li­ci­da­de. A Igre­ja-mis­são foi sobre­pos­ta à Igre­ja-cris­tan­da­de, quan­do esta era capaz de garan­tir aque­la. Daí a tare­fa urgen­te de ree­di­fi­car uma dou­tri­na polí­ti­ca católica.

Não há fór­mu­la per­fei­ta, mas temos as men­sa­gens dos papas e casos exem­pla­res. No caso, um elo­gio no tex­to é fei­to a Char­les Maur­ras, como cará­ter de inte­gra­ção da sã polí­ti­ca com o direi­to natu­ral, sem cair no deses­pe­ro. É maur­ra­si­a­na tam­bém a lição sobre a dife­ren­ça entre o deses­pe­ro e a pru­dên­cia, entre o mor­tal e o imor­tal na polí­ti­ca. O deses­pe­ro é o rei­no da insen­sa­tez, pois é uma con­ces­são gra­tui­ta ao Ini­mi­go. Se esta­mos lidan­do com o per­ma­nen­te, com a polí­ti­ca que não é para a mes­qui­nhez do tem­po das nos­sas par­cas vidas, mas de uma tra­je­tó­ria, dos nos­sos filhos, então só uma visão do infi­ni­to é capaz de revi­ver nos povos a sã polí­ti­ca. E isto só se faz com prudência.

NOTAS

[1] Há uma exce­len­te des­cri­ção des­se pro­ces­so de invi­a­bi­li­da­de da moder­ni­da­de indus­tri­al a par­tir do últi­mo livro publi­ca­do do soció­lo­go Alber­to Guer­rei­ro Ramos, ins­pi­ra­da na filo­so­fia polí­ti­ca de Eric Voe­ge­lin. GUERREIRO RAMOS, Alber­to, A Nova ciên­cia das orga­ni­za­ções: uma recon­cei­tu­a­ção da rique­za das nações. Rio de Janei­ro, Edi­to­ra da Fun­da­ção Getú­lio Var­gas, 1981.

[2] O mun­do con­tem­po­râ­neo atin­giu um nível de inse­gu­ran­ça, des­con­fi­an­ça e des­cré­di­to capaz de pôr o para­dig­ma da soci­e­da­de indus­tri­al no pas­sa­do. Ulri­ch Beck des­cre­ve esse fenô­me­no em seu Risk Soci­ety – Towards a New Moder­nity, lan­ça­do em 1986.

[3] Outra pro­du­ção soci­o­ló­gi­ca mar­can­te da cri­se do mun­do moder­no é a obra de Zyg­munt Bau­man, Moder­ni­da­de Líqui­da, lan­ça­do em 1999.

[4] Ver Manu­el Cas­tells, A soci­e­da­de em rede, de 1996.

[5] Sér­gio Abran­ches apre­sen­tou num exce­len­te ensaio sobre o mun­do em tran­si­ção que esta­mos viven­do, em A Era do Impre­vis­to, de 2017.

[6] Aqui refi­ro-me aos veto­res da moder­ni­da­de segun­do Rei­nhart Kosel­leck, como em Futu­ro Pas­sa­do.

[7] A fra­se foi toma­da de uma entre­vis­ta do filó­so­fo Remi Brague.